Solteira, mas não Solitária

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O papel da igreja no acolher da missão singular

Alguns meses atrás fui a um culto de consagração ao pastorado de um irmão que estava em candidatura para o trabalho transcultural junto à sua família. Dirigi-me a entrada da igreja junto com um grupo que chegara comigo, e tão logo sem que os outros percebessem, fui “detida” por uma pessoa que parecia fazer parte da organização do evento. A interpelação foi curta e direta: – “Se é solteira, deve ficar desse lado”. Enquanto isso, os outros amigos seguiam para o lado oposto do templo, podendo escolher os melhores lugares e cumprimentar os conhecidos. Nessa hora, sem me dar conta de qualquer justificativa logística para o evento, senti-me inevitavelmente excluída, junto a uma sensação de cerceamento da minha liberdade de escolha de um simples lugar para assistir à celebração que se iniciava. Pensei: Estou de castigo na cadeirinha por ser solteira?

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Esse simples e quase imperceptível evento me remete de imediato a questões socioculturais muito antigas no mundo. Pode parecer desproporcional a analogia que proponho a seguir, mas a julgo aplicável ao nosso interesse, pelo simples fato de carregar algumas variáveis que compõem o tema do livro “Solteiros, mas não Solitários”, tais como, classe, gênero, segregação, prejulgamento apenas pelo que se vê, exclusão, desconfiança, desamparo, incompreensão, vergonha, constrangimento, perda da liberdade humana para escolher e ocupar lugares/funções de acordo com seus interesses.

 Há alguns anos morei na África do Sul e tive a chance de visitar na Cidade do Cabo o Museu do Apartheid , onde se pode ter acesso à história completa desse movimento, fotografias, vídeos e grandes posters do conhecido representante político, Nelson Mandela, ativista incansável enquanto viveu, contra a cultura de segregação naquele país. Infelizmente até os dias de hoje pode-se notar na vida cotidiana daquela nação, resquícios, prejuízos e ainda ações discriminativas raciais.

A referência que faço se deve ao momento exato em que entramos no museu, quando eu e alguns amigos fomos divididos pelos recepcionistas entre corredores de acesso distintos uns dos outros, conforme o nosso ticket, inocentemente comprado na portaria. Não havíamos notado nada até então, mas a “brincadeira” proposta pelo museu era claramente provocativa, simulando uma segregação entre as pessoas apenas por causa da cor, raça, classe social, indicadas nas placas de acesso. A mensagem transmitida era de que tais grupos não podiam ocupar o mesmo espaço nos locais públicos. Os nossos bilhetes foram comprados aleatoriamente, sabíamos que não se referia a nós visitantes, mas só após alguns segundos, depois de sentir-nos confusos e desconfortáveis, é que entendemos que se tratava de uma estratégia para fazer o visitante refletir e sentir minimamente “na pele” a sensação terrível e humilhante de ser tratado de maneira inferior ou menos honrosa que outros em sua volta, apenas por não ter nascido “branco”.

Concordo que é uma ilustração muito forte, mas guardando as devidas proporções, não me contive em usá-la simplesmente por ter emergido da memória, justamente quando eu estava iniciando essa escrita, como um pensamento associado em cadeia, depositado no mesmo “compartimento” mental do pequeno incidente na igreja. Partimos da premissa de que morando em nossa cultura natal, apenas repetimos padrões comportamentais sem analisá-los ou sequer questioná-los. Fazemos isso o tempo todo até que visitamos ou moramos em outro ambiente cultural. Aí então somos imediatamente confrontados em nossas verdades culturais, e nos posicionamos de imediato: “Êpa, por que as coisas são feitas desta maneira nesse lugar? Na minha terra (cultura) não fazemos assim.”

            A igreja de Cristo é de fato um organismo onde se preserva o respeito, a unidade e o crescimento mútuo, para o bem do corpo todo. Mas, temos que concordar que nem sempre pensamos, refletimos, discutimos ou questionamos padrões que se referem as minorias. É possível que muito do nosso comportamento dentro das relações interpessoais na igreja, apenas remeta a uma repetição sem reflexão, do que tem mudado nas últimas décadas em termos de comportamento, categorias, opções e lugares subjetivos. A igreja de Cristo é um organismo invisível, porém muito ativo no mundo, pelo simples fato de ser uma igreja viva, representante de um Deus vivo. Sua missão onde quer que esteja plantada é salgar, e somente o fará se for capaz de enxergar-se como parte da sociedade vigente, refletindo sua voz profética fundamentada nas Escrituras, diante das mudanças socioculturais inevitáveis ocorridas com o passar dos anos. 

            Deixe-me trazer mais um exemplo pessoal para ilustrar o nosso momento. Durante os últimos três meses procurando imóveis para morar em Recife-PE, percebi uma incrível tendência das grandes construtoras de lançar projetos de condomínios fechados, onde se oferece diversas soluções para a vida cotidiana. No espaço comum além do antigo playground e parquinho, que já foi uma inovação da segunda metade do século passado com o crescimento da violência nas ruas, agora podemos contar nas novas construções com direito a academia, piscina e pista de corrida, além do salão de festas, dentro dos muros do edifício. Alguns projetos vão além, conjugando ainda uma lavanderia coletiva, aos moldes americano, ou seja, diversas máquinas de lavar a disposição dos moradores.

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            Agora vamos a nossa primeira questão. Quem sairia da amplitude dos antigos apartamentos para um cubículo deste? Os solteiros adultos com vida independente do ponto de vista financeiro e familiar. A indústria de construção civil percebeu de longe as mudanças socioculturais, os tais números se multiplicando a cada década e abriu um novo nicho empreendedor para solteiros do século XXI morar bem e ter uma vida enxuta e prática. Quem compra um imóvel de 35m2, em geral não está pensando em se casar e constituir família com filhos nos próximos dez anos de sua vida. É fato, as sociedades urbanas no mundo capitalista caminham para a rápida multiplicação do número de adultos solteiros, buscando uma vida independente dos pais e não aliando isso ao motivo do casamento. Este item que costumava ficar no topo das realizações humanas, agora perde no ranking para os estudos, a carreira profissional e a independência financeira.

            À primeira vista você pode pensar duas coisas: O que isso tem a ver com o nosso tema? Isso logo adiante você perceberá.  Segundo, pode lhe ocorrer que estou falando de apartamentos para classe alta e em bairros nobres apenas. Engano! Estes novos empreendimentos estão à disposição da classe média-baixa também, tanto em bairros mais periféricos, como nos mais centrais da metrópole. Qual é a grande cartada, então? Como é possível prover tanto conforto e praticidade para classes mais baixas? A resposta é que os apartamentos têm em média de 32 a 42m. Essa é a margem compensatória para as construtoras! Mais apartamentos em um só prédio construído, pagam o conforto e ainda sobra.

            Pesquisas feitas na primeira década desse século indicaram que o Brasil já contemplava um número em torno de 6,9 milhões de domicílios com pessoas morando sozinhas. O número cresceu entre os censos de 2000 e 2010 alcançando um aumento de 68,3% dessa população apenas em uma década. Outras pesquisas estimaram a duplicação desse número nessa década em que vivemos.  O IBGE atribui esse aumento a “um fenômeno eminentemente urbano, uma vez que 88% dessas unidades estavam situadas em cidades”.  É certo que as razões que provocam esse fenômeno da atualidade são diversas, contudo, o que se tem verificado é que maior parte das pessoas buscam essa alternativa de morar sozinho por opção, muito mais do que por necessidade.

Solteira e a igreja

            Além disso, ao que nos cabe, se a igreja está inserida na cidade, parte dessa população está no rol da nossa membresia, considerando em paralelo o aumento de evangélicos no Brasil, como outro fenômeno da atualidade. A pergunta que nos resta propor é: As nossas igrejas estão preparadas para lidar com essa nova tendência sociocultural em nossos dias? A exemplo das indústrias de alimentação, transporte, entretenimento e construção civil, será que como lideranças eclesiais e missionárias já nos antecipamos e nos dispomos a pensar estrategicamente em como alcançar esse público no mundo, recebê-lo bem na igreja, e ensiná-los na sã doutrina a serem solteiros santos, frutíferos e felizes por causa do Evangelho? Já nos antecipamos a esse ponto, ou ainda estamos marcando passo, segundo os padrões de ordenação social-familiar do século anterior?

            O livro Solteiros, mas não Solitários, reúne diversas vozes que trazem em suas experiências contadas de vida cristã e de serviço no Reino, além dos posicionamentos bíblicos, importantes contribuições, que nos remete ao ato de refletir, repensar e reformular os nossos paradigmas e construções mentais acerca dessa categoria civil “solteiro(a)” e do seu universo, mediante as exigências desse novo contexto em que vivemos e trabalhamos. Do começo ao fim desse compêndio de artigos e testemunhos, você será convidado(a) a sentar-se ao lado, ou ainda, tomar a pele de quem vive “fora do padrão esperado”, na sua maior idade e até na sua maturidade, transitando e servindo na igreja e no mundo transcultural. Perceberá de perto os seus dilemas, pressões e equívocos frente as normativas culturais, mas também as suas conquistas e alegrias de quem está firmado(a) em Cristo e convicto(a) da vontade de Deus para sua vida.

   

Verônica Farias

Psicóloga e Obreira na área do Cuidado Emocional

Artigo escrito para compor a Introdução do livro “Solteiros, mas não Solitários: solteiros no campo transcultural”, lançado em 2017, organizado por Antônia Van Der Meer e Rúbia Mara. Ed. Descoberta.

Leia mais uma artigo da Verônica Farias em nosso blog

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