Vivendo a Transição com a Bagagem Certa

Transições

O que realmente importa na jornada transcultural

Há quatro meses, um grande amigo de nossa família e trabalhador multicultural, que serviu no mesmo país por mais de 25 anos, completou sua carreira e foi chamado para a presença do Pai, deixando sua esposa e filho. Ficamos responsáveis por fechar a casa deles aqui e enviar para minha amiga, a esposa enlutada, alguns itens pessoais e objetos com valor emocional, como fotos, diplomas e lembranças. Fomos coordenando juntas, à distância, o que deveria ser enviado. Para minha surpresa, enorme foi o seu desprendimento, já que tudo o que ela pediu coube em uma mala de apenas 10 quilos. Desde então, não parei de refletir sobre o que realmente é necessário levar em cada transição dessa nossa jornada transcultural.

É verdade que ao longo dos anos servindo entre culturas, podemos acumular muitas coisas — objetos carregados de significados ou itens úteis para o ministério. No entanto, há uma bagagem sem restrição de peso, verdadeiramente essencial, que posso levar comigo por onde for — e quanto maior, melhor. Trata-se da bagagem adquirida com a experiência, na convivência com pessoas de outras culturas, no relacionamento diário com Jesus, nas provas e frustrações. Assim, a mulher multicultural vai enriquecendo sua mala com tesouros a cada nova etapa da jornada.

Por isso, achei fenomenal a proposta do livro O Que Tem na Mala do M…, pois é justamente sobre essa “arrumação das malas” que tanto tenho meditado nestes últimos dias. A coordenadora da obra, Jade Simões, destaca de forma lúdica o valor do que é realmente indispensável na bagagem de todo trabalhador multicultural — e que pode ser levado em abundância na carreira ministerial e adquirido continuamente ao longo da vida. Itens como o passaporte da renúncia, o mapa da Palavra, a caneta do propósito, os óculos da fé, o visto da obediência, entre outros quinze elementos, são os verdadeiros valores a serem buscados com esmero. Ela nos motiva a revisar profundamente nossa bagagem, avaliando o que realmente temos adquirido de valor eterno, e nos convida a nos despojar do desnecessário para que nossa caminhada seja leve e duradoura. Mas será que estamos conscientes do que já está em nossa “mala” e do que ainda nos falta? Ou ainda gastamos mais tempo e energia nas coisas que não poderemos levar em nossa próxima mudança?

A mala de 10 quilos da minha amiga continua ecoando em minha mente. Talvez porque eu também esteja em um processo de mudança de país, depois de quase vinte anos morando no mesmo lugar. Estamos avaliando com cuidado o que realmente devemos e podemos levar. Mas, no fim, volto sempre para o mesmo pensamento que me acompanhou no início da minha jornada multicultural: é preciso viver com a perspectiva da esperança e da vida de peregrino. E isso me ajuda muito no momento de arrumar as malas para a próxima transição.

Levando na bagagem o essencial
bagagem

O apóstolo Paulo nos aconselha a nos alegrar na esperança (Rm 12:12). Para ilustrar um pouco esse conceito, me lembro de quando estávamos prestes a nos mudar para outro país, onde meu esposo deveria finalizar seus estudos. Iríamos morar perto do seminário, em um local reservado para obreiros multiculturais, com estadia limitada a um ano. Recebemos um e-mail informando que os apartamentos estavam totalmente equipados — nem toalhas precisaríamos levar. Você pode imaginar minha alegria! Meses antes da partida, eu estava muito empolgada na espera, olhando pelo Google Maps a rua onde iríamos morar, vendo o que havia ao redor… meu coração estava cheio de expectativa, ou melhor, meu coração já estava lá. No entanto, chegou a pandemia e os planos foram frustrados. Essa experiência me fez entender melhor o que a Bíblia ensina sobre viver sob a perspectiva da esperança — viver olhando para o que se espera, colocando os olhos nas coisas do alto: “Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra” (Cl 3:2). Isso nos lembra que não devemos nos apegar demais às coisas materiais, nem depender delas para trilhar nossa jornada — afinal, isso nem condiz com nossa vocação. Pelo contrário, devemos buscar com zelo uma vida simples.

E viver de forma simples e desapegada exige intencionalidade. Só mesmo cultivando a disciplina da simplicidade é que poderemos caminhar como peregrinos nesta terra, como estrangeiros em um país distante, de modo que, a cada transição, o processo de desapego não se torne um sofrimento excessivo. Richard Foster, no livro Celebração da Disciplina, afirma com sabedoria: “Simplicidade é liberdade, não escravidão. A simplicidade coloca as posses na devida perspectiva”. A anedota a seguir ilustra bem esse espírito:

Um homem foi visitar um rabino famoso. Ao chegar, ficou surpreso ao ver que a casa do rabino era extremamente simples: havia apenas uma mesa, uma cadeira e poucos outros móveis.
O visitante então perguntou:
— Onde estão os seus móveis?
O rabino respondeu calmamente:
— Onde estão os seus?
O homem, surpreso, respondeu:
— Mas eu estou só de passagem!
O rabino então sorriu e disse:
— Eu também.

Essa é a perspectiva do peregrino e estrangeiro. Como mulheres multiculturais, temos sensibilidade para compreender esse chamado — tanto espiritualmente quanto na prática da vida ministerial longe da pátria. E percebo que as mudanças de localidade são excelentes oportunidades para avaliar até que ponto as coisas materiais têm valor para mim e que lugar ocupam no meu coração.

Você já reparou como atribuímos valor emocional aos objetos? A cada transição de campo, sofremos por não poder levar isso ou aquilo, apelando ao valor sentimental. Mas esse é um desafio inevitável da vida transcultural: saber que nem tudo poderá nos acompanhar. A menos que alguém possa levar tudo num contêiner — mas mesmo isso exige cautela. Conheci trabalhadores que chegaram ao campo com casa completa, carro e todos os mínimos objetos organizados dentro de um contêiner… mas não permaneceram por mais de dois anos. Porque o essencial, aquilo de que se trata o livro da Jade Simões, não estava na bagagem.

Ciente disso, tenho desenvolvido minha própria estratégia de desapego. Tenho olhado para alguns objetos que gosto muito e agradecido a Deus por ter me permitido desfrutar deles enquanto vivi neste país — pelo significado que tiveram para mim ou para minha família, e pelo papel que desempenharam em nossa história aqui. Ao mesmo tempo, já tenho começado a me preparar para deixá-los. E agradeço também pelo novo que nos espera no próximo país onde vamos morar. Essa prática me ajuda a confiar que o Senhor proverá o que for necessário no futuro — e que novas histórias, cheias de significado, também serão tecidas ao longo do caminho.


Cada transição tem me ensinado que viver como estrangeira é muito mais do que fazer as malas — é um exercício diário de confiança, desapego e esperança. A cada passo, o Senhor me lembra que o mais importante da jornada não são os bens acumulados, mas os tesouros que carrego no coração: fé, propósito, obediência e a certeza de que Ele caminha comigo. Que eu nunca perca de vista essa perspectiva, e que minha mala — a visível e a invisível — esteja sempre pronta, com aquilo que realmente importa.

Você pode continuar lendo temas relacionados à vida da mulher multicultural em nosso Blog CMM

Daniela Condor

Colaboradora da redação do Blog CMM, esposa, mãe, servindo entre culturas desde 1995. Atualmente vivendo em um país da África Ocidental.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima