Desafio Emocional Não é Falta de Fé

Reconhecer a dor é o primeiro passo para a cura — inclusive no campo transcultural

Setembro Amarelo nos lembra da importância de falar sobre saúde mental — inclusive entre mulheres multiculturais.
Mesmo servindo em outros contextos, com fé e propósito, não estamos imunes ao esgotamento, à ansiedade ou à dor emocional. Falar sobre isso é sinal de coragem, não de fraqueza. E pode salvar vidas.

A psicóloga da escola chama Anne para conversar sobre seu filho

Diante da profissional, o menino conta que sente medo de fracassar por causa da educação muito rígida que recebe da mãe. Confrontada com essa questão, Anne fica muito desconfortável. Ela admite que é uma pessoa muito explosiva, diz que os comportamentos do filho muitas vezes a tiram do sério e que, em algumas ocasiões, acaba recorrendo a castigos físicos.
Mesmo assim, ela recusa a sugestão da psicóloga, que a orienta a procurar terapia para trabalhar essas questões.

Médico, tudo bem. Psicólogo, jamais!

Infelizmente, essa situação não é fictícia — e, sim, bastante comum. Inclusive em comunidades cristãs e ambientes transculturais.
Às vezes ouvimos frases como:
“Ufa, o médico finalmente descobriu uma causa física para as dores de barriga (ou insônia, ou problemas de comportamento, ou outra coisa) do meu filho.”
Qualquer coisa, menos me dizer que é psicossomático!

É como se a ideia de procurar um psicólogo ou fazer terapia assustasse. Como se confiássemos que Deus usa os médicos para tratar o corpo, mas não quiséssemos nem ouvir falar da psicologia ou psiquiatria.
Sim, é preciso coragem para encarar um processo terapêutico, e humildade para expor áreas da nossa vida que muitas vezes escondemos — até de nós mesmas. Mas esse caminho pode ser libertador.
E para nós, mulheres multiculturais, que muitas vezes não temos com quem dividir nosso peso emocional, isso pode ser essencial.

Acompanhamento que muitas vezes é necessário

Em alguns casos, a pessoa nem tem escolha — como quando se trata de uma doença psiquiátrica, por exemplo.
No livro “Tomo antidepressivos, graças a Deus! Um caminho para a alegria” (Ed. Unixtus), Jane Maire Newman conta como “entrou em colapso” em 1985, enquanto participava de um projeto de tradução da Bíblia na Costa do Marfim. Os remédios a ajudaram a sair de um estado de prostração profunda, e o acompanhamento com psicoterapia permitiu que ela voltasse a trabalhar e cuidar da família, que mais tarde cresceu para quatro filhos.

Hoje ela incentiva outras mulheres a não bancarem as heroínas, se negando a buscar ajuda profissional (com ou sem remédios), quando ela é necessária — mesmo que por um longo período.
E convida a reconhecer com gratidão tudo o que nos ajuda a viver plenamente.

No contexto transcultural, onde tantas vezes nos sentimos pressionadas a manter tudo sob controle, é importante lembrar: não somos menos espirituais por precisar de ajuda. Não somos menos chamadas por admitir nossas fragilidades.

O missionário Timothée Paton também resolveu quebrar o silêncio, em 2020, ao contar no seu site que sofre de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) há mais de 30 anos.
Em um testemunho muito comovente, ele traz à tona esse sofrimento que atinge milhões de pessoas. Orador internacional, evangelista e autor, ele hoje encoraja a Igreja a se levantar e a dar voz àqueles que enfrentam, todos os dias, medos e angústias aparentemente sem explicação.

É psicológico, espiritual ou psiquiátrico?

Como distinguir o que é uma questão espiritual, o que é psicológico e o que é psiquiátrico?
Nem sempre é fácil se localizar nesse universo da saúde mental, principalmente quando estamos em outra cultura, longe da nossa rede de apoio e cercadas por demandas emocionais diversas.

Buscando entender se é possível conciliar fé e psicologia, a revista SpirituElles entrevistou três profissionais cristãos:

  • Frédéric Siegenthaler, pastor e professor de aconselhamento pastoral,
  • Anne Pelet, médica especializada em medicina psicossomática,
  • e Rashad Chichakly, psiquiatra.

Cada um explicou como atua e como fé e ciência podem caminhar juntas — algo que pode ser extremamente relevante para quem serve em contextos transculturais, onde o isolamento emocional é um desafio constante.

Abordagens que se complementam

O pastor Frédéric Siegenthaler explica que, quando um cristão o procura, ele costuma propor uma série de cinco encontros. Para algumas pessoas, isso já é o suficiente. Para outras, é preciso ir além. Se o pastor percebe que o caso pode exigir o uso de medicamentos, ele encaminha a pessoa para um médico ou psiquiatra.
Dependendo da situação, ele também orienta a buscar outros tipos de terapeutas — como especialistas em família, casal ou dependência química.

O psiquiatra Rashad Chichakly — que vê sua profissão como “uma vocação, um chamado de Deus” — destaca que muitos pastores hoje já conseguem diferenciar questões espirituais de transtornos psiquiátricos.
Ele também observa que a ideia de que psicólogos afastam as pessoas de Deus está cada vez menos presente. E reforça:

“É melhor um psicoterapeuta não cristão e competente do que um psicoterapeuta cristão e despreparado.”
Um bom profissional saberá reconhecer e respeitar os valores espirituais do paciente.

Essa é uma informação importante para mulheres multiculturais, que às vezes se sentem divididas entre a fé e o cuidado com a saúde emocional. Não é uma escolha entre um ou outro. É possível integrar ambos.

Um trabalho que exige discernimento

A médica Anne Pelet propõe a todos os seus novos pacientes — independentemente de religião — uma reflexão sobre espiritualidade e crenças, por meio de um questionário.
Para ela, a espiritualidade faz parte dos recursos internos da pessoa e precisa ser levada em conta no processo terapêutico.

Ela divide os sofrimentos psicológicos em duas categorias:

1. Casos pontuais

São situações em que a pessoa, de repente, não consegue mais “funcionar” e precisa se afastar do trabalho. Ela pode estar sofrendo com ansiedade, depressão ou burnout, por exemplo.
Essas pessoas precisam de ajuda para entender o que as levou ao colapso, avaliar o que não está bem na vida delas e fazer um trabalho profundo para encontrar um novo equilíbrio.
Nesses casos, os medicamentos podem ser usados como apoio, de forma temporária.

2. Casos crônicos

Aqui entram doenças psiquiátricas como esquizofrenia, transtornos esquizoafetivos e transtorno bipolar, entre outras.
Para essas pessoas, o mais importante é aceitar que vão conviver com a doença, precisar de remédios e acompanhamento de longo prazo.

Mas mesmo nesses casos, Anne Pelet incentiva os pacientes a não focarem só na doença — e sim a continuar vivendo plenamente, dentro das suas possibilidades.

Se você está no campo transcultural ou vive entre culturas, lembre-se: pedir ajuda não é sinal de fracasso, mas de maturidade. Deus se importa com a sua mente tanto quanto com o seu chamado.

Este texto também foi publicado em francês no SpirituElles

Leia mais textos relacionados à saúde emocional da Mulher Multicultural em nosso blog CMM

Irene Gasser Rodrigues

De nacionalidade Suíça, nasceu e cresceu no Togo. Ela é casada com Brasileiro, eles tem três filhos. Formada em pedagogia e musicologia, poliglota, ela trabalha em contexto transcultural há 22 anos em 3 continentes. Ela ama criar delícias na cozinha e dar aulas de idiomas. Atualmente mora no Brasil e trabalha com cuidado de filhos multiculturais com WEC Brasil. @irenegasserrodrigues @geleiasdairene @fluentecomirene

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