
Sentir falta do que não vivi: um desafio comum entre filhos multiculturais
Saudade é algo muito presente na vida dos filhos multiculturais. Ela vem como um “brinde” para aqueles que vivem aqui e lá, entre os “sejam bem-vindos!” e os “vão com Deus!”. A saudade anda junto com as perdas vividas a cada transição e, também, com os ganhos (uma nova escola, novos amigos, novas experiências, etc.). É o agridoce da vida multicultural, não é verdade? E em meio a tudo isso, algumas saudades são óbvias, nítidas e até recíprocas. Outras, nem tanto. Existem saudades inesperadas! E uma delas é a saudade de um passado que nem aconteceu!

Como filho multicultural, você cresce entre culturas, transições, mudanças, perdas e ganhos, desafios e privilégios que essa experiência te presenteia. E nessa jornada, é fácil notar as diferenças que existem entre a sua experiência pessoal de vida e a experiência de vida das pessoas monoculturais – aqueles que vivem sempre na mesma cultura. Mas nem sempre é comum você parar para imaginar como seria a vida se não fosse assim como é.
Por isso, a “saudade do passado que eu não tive” é mais uma das surpresas desafiadoras de quem enfrenta a reentrada – retorno ao país de origem. É geralmente, quando você percebe que poderia ter existido um outro “normal” ao voltar para uma realidade que, em tese, seria a sua.
EVENTO

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A Reentrada é um processo único para cada Filho Multicultural, mas posso afirmar que, para a maioria, os primeiros meses têm sabor de “modo sobrevivência”: o que eu falo? Como falo? O que eu faço? Como faço? O que vestir? Para onde vou? Como vou? Por que vou? E esse impacto ocorre independentemente de estar ou não perto dos familiares ou conhecidos. É desafiador se adaptar a essa “nova” cultura que supostamente seria sua, ao novo estilo de vida, aos novos lugares e às novas rotinas. No início, nosso passado multicultural pode até ter mais protagonismo — afinal, ele é o tema principal das perguntas que nos fazem e das conversas iniciadas. É interessante notar que a nossa identidade multicultural vem estampada na maneira como nos vestimos, no jeito que falamos. Muitas vezes, sendo a culpada da maioria das gafes e micos que cometemos. Mas também do “estrelato” que experimentamos.

Porém, com o tempo, ao nos adaptarmos, ao nos integrarmos, quando as novidades viram rotinas, um outro passado inesperado entra em cena. Algo aparentemente inexistente, um espaço vazio. E, falando assim, não faz sentido que isso nos afete. Contudo, ele nos causa uma saudade peculiar.
Sabe aqueles momentos que junta a família — avós, tios e primos —, vendo álbuns de fotos, relembrando momentos muito importantes que partilharam, mas você não estava lá. Seus primos compartilham tradições na casa da sua avó, e você, em parte, se sente uma verdadeira penetra. Você não conhece as tradições, não entende as piadas internas e provérbios usuais. E ali, de repente, bate uma saudade de algo que você poderia ter vivido, mas não viveu.
Suas novas amigas conversam sobre fatos que todas viveram juntas: o casamento da Roberta, o nascimento da Maria, a festa da Cristina. Relembram a beleza do dia, riem do cantor que desafinou, comentam sobre os vestidos mais extravagantes e imitam o gaguejar dos votos do noivo. Até que, percebendo que você não está participando da conversa, perguntam com surpresa: “Mas você não estava no casamento da Roberta?!” Parecendo tão óbvio que o “mundo todo” estava naquele evento, por mais que para você não fizesse nenhum sentido — afinal, quando o evento aconteceu você ainda não morava lá. É interessante notar o choque para todas ao reconhecer a sua ausência. Naquele momento dá saudades, né? Você nunca quis tanto ter estado naquele casamento!
Construindo nova memórias
É fácil reconhecer que o passado multicultural foi incrível, existindo muita gratidão, orgulho e saudades. Contudo, na fase da Reentrada, você pode estar longe de todos que dividiram aquele passado com você. Então, embora não queira de forma alguma desvalorizar o passado que teve, chega o momento em que ele vai ficando no fundo da gaveta. O passado que você viveu não foi compartilhado com eles que estão presentes, então não é algo do qual juntos possam rir, chorar, relembrar etc. Daí nota-se claramente o doce e o amargo da vida entre culturas que precisamos reconhecer.

Como filhos multiculturais, é importante reforçar a necessidade de reconhecer e saber nomear isso. E para mim, Daisy, uma filha multicultural, essa frase faz muito sentido: “ Enfrentar a saudade de um passado que eu não tive.” Antes de compreender, eu só entendia que ficava triste e frustrada. Desconfiava que estava sentindo ciúmes ou inveja, e até mesmo ingratidão. Mas, depois de nomear todo aquele conjunto de sentimentos, percebi que na verdade aquele processo era normal, e que é perfeitamente possível sentir saudade daquilo que não aconteceu porque você não estava lá! E entender isso me fez olhar para frente com mais compreensão e intencionalidade, ajustando as minhas expectativas. Afinal, aquelas nunca serão minhas amigas de infância, mas amigas para uma nova fase. E assim, vou compartilhar momentos importantes dessa nova fase com elas e com quem Deus me permitir compartilhar. Novos álbuns de fotos serão adicionados à estante da sala. E, daqui a uns anos, talvez conversemos sobre isso.
Essa verdade sobre a “saudade de um passado que eu não tive” não define que eu e você não possamos construir, a partir daqui, novas tradições, novas piadas internas, novas memórias que se somarão a todas as outras que foram tecidas na sua história como filho multicultural. E jamais poderá negar que o nosso passado multicultural foi maravilhoso!
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