Pais Imperfeitos, Filhos Feridos na Experiência Multicultural

Ressignificando Dores e Restaurando Feridas da História Multicultural dos Filhos

Naquele aeroporto em que passamos fome?

“Pois se perdoarem as ofensas uns dos outros, o Pai celestial também lhes perdoará. Mas se não perdoarem uns aos outros, o Pai celestial não lhes perdoará as ofensas”. Mateus 6:14,15

Recentemente, em uma de minhas reuniões mensais com os pais de FTCs da minha organização, nós conversamos sobre o perdão. Naquela reunião, nenhum de nós achava o perdão algo simples, fácil de falar ou praticar. Talvez você se relacione conosco.

Embora o perdão tenha muitas facetas diferentes, muitas questões e circunstâncias difíceis envolvidas, meu objetivo hoje não é aprofundar em todas elas. Eu gostaria de simplesmente focar em nosso relacionamento com nossos filhos – relacionamento pais-filho.

Meu marido e eu temos algumas histórias em que nossos filhos, especialmente os dois mais velhos, tiveram que nos perdoar. O ano de 2022 foi difícil para nós, mudamos de cidade em janeiro, ficamos desapontados quando chegamos ao nosso novo local de serviço, demoramos para nos adaptar e nos esforçamos para ajudar nossos filhos em sua adaptação, a incerteza pairou sobre nós durante a maior parte do primeiro semestre e no final do ano para completar a insegurança, acabamos decidindo mudar nossos filhos para uma nova escola em 2023.

Essa foi uma jogada ruim, ao invés de prepararmos eles para fazerem o gol da adaptação, nós os derrubamos na área e o juiz não deu pênalti, afinal jogávamos no mesmo time (ilustração para as minhas amigas amantes de futebol, como eu!). Eles tiveram um final de ano turbulento por causa de nossa decisão e um início de ano letivo ainda mais turbulento por causa de nossa decisão apressada de mudá-los de escola. Para encurtar a história, em março de 2023, nós, humilde e embaraçosamente os transferimos de volta para a escola anterior.

Isso pode não parecer muito para você, mas para um menino de onze anos que estava se esforçando para se encaixar e para confiar em Deus, isso foi uma grande coisa. Para uma criança de nove anos que lutava para acreditar que sua identidade podia estar em Cristo e não em seus colegas, isso foi uma grande coisa. Louvamos a Deus porque pelo menos Joanna, com 4 anos na época, apesar de não gostar da troca de escola, estava razoavelmente feliz conosco.

Qualquer mãe lendo isso aqui deve ter arregalado os olhos! Mas é claro que ela não deixou a filha passar fome! E você tem razão. As lembranças da filha mostravam como ela, quando criança, havia sentido e entendido a realidade que se passou naquele aeroporto.

CMM - perdão - freeepick

Tivemos que pedir perdão aos nossos filhos. Nossos filhos graciosamente encontraram uma maneira de nos perdoar. Eles viram como estávamos confusos. A transição tinha mexido muito com nossa forma de ver e aceitar a nova realidade em que vivíamos.

Desde então, virou uma piada interna que não somos muito confiáveis em decisões escolares! Reconhecemos o estresse que os fizemos passar, um estresse desnecessário, e somos muito gratos que a graça de Deus encontrou uma maneira de ajudar nossos filhos nesse período.

De quem é a responsabilidade para o primeiro passo?

O perdão não é algo que podemos forçar; demorou um pouco para eles nos perdoarem. E às vezes essa dificuldade se mostra novamente em forma de alguma brincadeira irônica ou outra.

Talvez, agora, você tenha começado a pensar em seus próprios exemplos. Às vezes, a situação não é tão simples quanto mudar as crianças de volta para a escola anterior. Às vezes erramos muito, às vezes nossos filhos erram muito, às vezes marido e mulher erram um com o outro e as crianças sofrem as consequências.

Na maioria das vezes, nossos filhos ou nós mesmos não estamos prontos para jogar fora a dor e a mágoa ao mesmo tempo. Precisamos esperar uns pelos outros neste processo. Precisamos dar uma olhada profunda nessa dor, reconhecê-la, nomeá-la, sentir as emoções, a raiva, a tristeza. Expressá-la com alguém: com Deus, com um amigo ou no nosso diário. Tudo isso faz parte do processo de perdão para nós e nossos filhos.

Ulrika escreve: ‘A responsabilidade pelo processo de perdão é sempre dos adultos. Como adultos, precisamos modelar como dar e receber perdão’[1]

O desafio é nosso, como adultos no relacionamento. Às vezes, nossos filhos precisam ouvir de nós que sentimos muito e cometemos um erro, mesmo que isso signifique voltar a situações que aconteceram há 5, 10, 15 anos. Outras vezes, não é exatamente uma questão de certo e errado, mas as situações que vivemos deixaram uma marca em nossos filhos e precisamos ajudá-los a encontrar um novo significado para essas memórias agora que estão mais velhos e mais maduros. Revisitar o passado pode trazer grande cura e liberdade para um relacionamento entre pais e filhos. E podemos fazer isso por causa do amor de Cristo e do perdão que recebemos Dele.

Uma mãe compartilhou comigo uma situação com sua filha de 16 anos. Ela me contou que estavam conversando sobre uma de suas mudanças quando a filha era criança. E em um dado momento a filha disse: ‘Ah, eu lembro disso, foi naquele aeroporto que você e papai nos deixaram passar fome.’

E a mãe continuo me contando que naquela ocasião eles haviam levado sanduíches e lanches para comer visto que comida de aeroporto é muito cara. Os pais nem imaginavam que sua filha tinha uma memória em seu coração de que eles não a amavam o suficiente para dar coisas boas para ela (no caso coisas gostosas de aeroporto).

Essa situação vivenciada por eles deixaram uma marca em sua filha e eles precisavam ajudá-la a encontrar um novo significado para essa memória agora que ela estava mais velha e mais madura.

Revisitar o passado para eles trouxe à tona uma mentira que muitos de nossos filhos acreditam. ‘Meus pais não me amam o suficiente para me dar o que eu preciso’. Vejam que nossos filhos costumam usar a palavra ‘preciso’ no lugar da palavra ‘quero’. Com 16 anos, a filha consegue entender quanto vale o dinheiro e como melhor usá-lo. Essa era uma boa hora para revisitar essa memória. Para a mãe, também era hora de revisitar seu estresse nesse aeroporto, sua preocupação com as finanças, sua dificuldade em estar se despedindo de seu país de origem, sua dificuldade de sensibilidade para com seus filhos naquele momento. Tudo isso é muito justificável para quem está em transição, porém, ser justificável não torna nossas atitudes certas aos olhos de nossos filhos.

Para nós, pais, é sempre hora de pedirmos para nossos filhos nos contarem como foi ‘tal situação’ que vivenciamos como família, como foi a estada na sede da nossa organização, como foi a passagem pelo aeroporto tal, como foi para eles ficarem x dias sem mamãe e papai, você sabe sua história, reflita e pense em eventos que trazem reticência em seus filhos.

Às vezes, precisamos perdoar nossos próprios pais para poder seguir em frente em nosso relacionamento com nossos filhos. Às vezes, precisamos perdoar e ajudar nossos filhos a perdoar os líderes que tomam decisões sobre nós, isso é especialmente importante no que diz respeito a FTCs e realocações.

Nosso Pai Celestial conhece e é o Pai perfeito de que nossos filhos e nós precisamos.

Convido você a refletir sobre as seguintes perguntas e pedir a Deus que o guie por meio da oração no que Ele a está chamando para fazer a seguir.

  • Suas decisões, estilo de vida, maneira de ser e agir prejudicaram seus filhos?
  • Há algo que você queira comunicar aos seus filhos? Alguma coisa que você queira mudar ou fazer de outra maneira?
  • Você precisa perdoar a si mesma? Você se sente machucado por outros?
  • Como seus filhos percebem fazer parte de seu trabalho/missão? Seu relacionamento com sua liderança afetou seus filhos de maneira ruim?

Vamos aceitar o desafio de perdoar uns aos outros como Deus nos perdoa a cada dia.

Minha esperança, ao refletirmos sobre o perdão nesse artigo, é que possamos encontrar um lugar seguro para reconhecer nossas imperfeições como pais e seguidores de Cristo. E oro para que nosso Pai nos ajude a receber o perdão de Jesus, que Ele nos ajude a perdoar a nós mesmos, nossos filhos e os outros como Ele nos perdoa todos os dias. (Mateus 6:14-15)


[1] ‘Crianças da Terceira Cultura: Um Presente para cuidar’ por Ulrika Ernvik p.339

Este texto foi baseado no capítulo 48 do livro acima.

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EVENTO

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O evento Cuidando dos Filhos Multiculturais, nos dias 28 a 31 de outubro, reúne especialistas experientes para capacitar pais, cuidadores e educadores. Serão abordadas questões fundamentais para promover reflexões e ações que favoreçam o cuidado preventivo e curativo, evitando traumas desnecessários e o abandono precoce do serviço multicultural, enquanto fortalecem a formação espiritual e emocional saudável do TCK/FTC – Third Culture Kid/ Filho de Terceira Cultura.

Carolina Rout

Brasileira, seguidora de Cristo, casada com Philip Rout (inglês), tem três filhos Benjamin, Samuel e Joanna. Junto com seu marido são trabalhadores da Latin Link Brasil. É formada em Pedagogia.

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