O Legado do Cuidado: Aprendizados de uma Capacitação Sobre Filhos Multiculturais

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O que aprendemos no evento que reuniu mulheres de diversos países para falar sobre filhos multiculturais

Durante os quatro dias do Evento Cuidando dos Filhos Multiculturais, vivi algo que me marcou profundamente.
Mais de 160 mulheres, espalhadas por diferentes países, se reuniram online com um mesmo propósito: entender, acolher e cuidar dos filhos que crescem entre culturas — os chamados Filhos de Terceira Cultura (FTCs).

Foram dias de escuta, de emoção e de muito aprendizado. Tivemos palestrantes internacionais, tradução em três idiomas, e um senso de comunhão que atravessou fronteiras e fuso horários.
A cada fala, eu me via mais convicta de que esse encontro foi, e será , um marco, não apenas para nós, mas para as gerações que virão.

O evento, promovido pelo CMM, veio para nos lembrar que cuidar da família multicultural é parte essencial do chamado. E que os filhos, muitas vezes silenciosos nesse processo, carregam histórias e sentimentos que precisam ser ouvidos com amor e preparo.

Michael Pollock: a beleza e o desafio de crescer entre culturas

Logo na abertura, Michael Pollock, coautor do livro Third Culture Kids, nos conduziu a um mergulho profundo no tema.
Ele começou lembrando que as crianças não são apenas acompanhantes da missão, elas são seres humanos completos, criados por Deus com corpo, mente, emoções e espírito.

“Nossas crianças são seres humanos integrais”, diz Michael com muita propriedade.

Vou sempre me lembrar da comparação que ele fez do crescimento das crianças a árvores plantadas dentro e fora de uma estufa.

“A árvore que cresce ao ar livre enfrenta ventos e tempestades, mas torna-se mais forte e resiliente.”

Fiquei refletindo sobre isso. Às vezes, como mães, pais ou líderes, queremos proteger tanto nossos filhos das tempestades, que esquecemos que elas também fazem parte do processo de amadurecimento.
Mas, e esse foi o ponto que Michael reforçou — nenhuma árvore cresce sozinha. Ela precisa de solo fértil, de sol, de água e de cuidados.
Assim também nossos filhos precisam de apoio e presença, especialmente quando enfrentam mudanças, despedidas e a dor do recomeço.

Michael falou sobre a importância de ajudar as crianças a reconhecerem suas perdas e a expressarem o que sentem.
Porque a vida transcultural é cheia de riquezas, mas também de lutos silenciosos.
Saí da palestra com a sensação de que resiliência não é algo que se impõe, é algo que se constrói, juntos.

Valeska: cuidado dos filhos multiculturais na perspectiva latino-americana

A palestra da Valeska me marcou profundamente, especialmente por trazer uma perspectiva que raramente temos oportunidade de ouvir: o cuidado dos filhos multiculturais a partir da realidade latino-americana. Ela nos lembrou que, embora os desafios de ser filho de obreiros sejam universais, existem nuances culturais que afetam profundamente como as crianças vivem essas experiências.

Valeska trouxe dados que me fizeram refletir, tais como: 21% dos filhos de terceira cultura  apresentaram experiências adversas significativas, e muitos enfrentam pressões próprias da realidade latino-americana, como instabilidade social, mobilidade frequente e desafios financeiros familiares. Mas ela não parou nas dificuldades. Destacou também os fatores de proteção, como apoio emocional consistente, presença afetiva, valorização da cultura local e o cuidado com as amizades.

“Quando sete ou mais desses fatores estão presentes na vida de uma criança, ela cresce mais segura e equilibrada”, explicou.

Eu me emocionei pensando em quantas vezes, na correria do ministério, priorizamos o “fazer” e esquecemos de olhar para os pequenos olhos que nos observam, especialmente em contextos culturais complexos como o nosso na América Latina.

Essa perspectiva me trouxe clareza: o cuidado dos filhos multiculturais não é apenas técnico, é pastoral e cultural. E é justamente por isso que o CMM é tão importante — este movimento nos oferece ferramentas e insights para que pais e apoiadores acompanhem de perto o desenvolvimento emocional e espiritual dos filhos, respeitando suas experiências e suas raízes culturais.

Megan Norton: o jardim do pertencimento

A terceira palestra foi com Megan Norton, autora de Belonging Beyond Borders.
Desde o início, ela nos envolveu com sua ternura e com uma frase que ecoou fundo em mim:

“Pertencer não é algo que se encontra — é algo que se cultiva.”

Megan falou sobre identidade, relações e propósito como os três pilares do pertencimento.
Enquanto ouvia, eu pensava em quantas vezes tentamos “definir” a identidade de nossos filhos por uma nacionalidade, uma língua ou um passaporte — e esquecemos que a identidade deles é muito maior do que qualquer fronteira.

Chicos de tercera cultura - CTC - freepik

O que mais me encantou foi a imagem que ela usou: o pertencimento como um jardim.
Cada amizade, cada memória, cada despedida é uma semente.
Algumas florescem rápido, outras demoram. Há períodos de poda e de florescimento.
Mas, em todas as estações, Deus está cuidando do solo.

Ela também falou sobre a “Identidade em Órbita” — um modelo visual que mostra como nossa identidade central pode permanecer firme mesmo quando tudo ao redor muda.
Foi libertador ouvir isso. Quantas vezes sentimos culpa por não “nos encaixarmos” completamente em lugar nenhum?
Megan nos lembrou que não precisamos escolher uma única cultura para pertencer — podemos pertencer a muitas, e isso é uma riqueza.

Painel com Filhos de Terceira Cultura Adultos: reencontros e cura
Filhos de terceira cultura - freepik

O painel final foi, para mim, o momento mais emocionante.
A Arlete Castro conduziu com sensibilidade uma conversa com quatro adultos que cresceram entre culturas: João, Tiago, Eduardo e Guille.
Cada história era um espelho de emoções — despedidas, descobertas, fé e reencontros.

 João Carpenter – Entre culturas e raízes
João compartilhou como crescer entre Estados Unidos, Brasil e Portugal moldou sua sensibilidade: “Na época, eu não percebia a riqueza de ter vivido em tantos lugares. Só mais tarde entendi o quanto isso me formou.” O retorno aos EUA foi surpreendentemente estranho: entrar na cultura dos próprios pais, que já se tornaram mais brasileiros do que americanos. Hoje, ele vê essa trajetória como uma ponte de empatia: “Quando encontro alguém que viveu entre culturas, nos entendemos sem precisar explicar muito.” Aprender a criar raízes e desapegar ao mesmo tempo se tornou sua forma de viver plenamente cada amizade e experiência.

Tiago Moreira – A graça de aceitar a própria história
Tiago trouxe à tona o desafio de crescer em Viena, sendo um dos poucos brasileiros em sua escola americana: “Aprendi a não me aprofundar muito nos relacionamentos, para não sofrer com as separações.” Esse mecanismo de proteção trouxe sentimentos de inadequação e não pertencimento, que ele precisou aprender a aceitar. Hoje, vê tudo como um privilégio: “Descobri que o sentimento de não pertencimento é humano. Aceitar minha trajetória com todas as perdas e ganhos é aceitar a graça.” Sua experiência entre culturas o ensinou a olhar para fora, valorizar histórias diferentes e se tornar mais humano.

Eduardo – Conexões e presença
A mudança recente para Moçambique fez Eduardo perceber a importância da conexão humana. A pandemia intensificou essa sensação: “Foi muito difícil ficar trancado em casa. Aquilo me fez perceber o quanto preciso de conexão.” Apesar das constantes mudanças e da dificuldade de criar raízes profundas, ele mantém vínculos à distância e entende que amizade e presença são construções que exigem esforço e cuidado, mesmo em contextos transitórios.

 Guille Eddy – Relações como identidade
Guille começou sua fala com uma frase marcante: “Eu não sou o que eu faço. Eu sou os meus relacionamentos.” Nascido em Cuba, criado no Panamá, estudando nos EUA e vivendo na Espanha, ele passou por uma longa crise de identidade: “Faltava uma peça do quebra-cabeça.” Encontrar o conceito de “filho de terceira cultura” foi libertador: “Chorei por todas as despedidas não choradas… e percebi que precisava me permitir sentir.” Hoje, Guille vive com vulnerabilidade: prefere se ferir criando laços profundos a erguer muros, porque sabe que as despedidas, embora dolorosas, abrem espaço para novos encontros.


O painel nos deixou com um aprendizado profundo: ser filho de terceira cultura é aprender a equilibrar pertencimento e partida, enraizar e desapegar. Arlete Castro, nossa facilitadora, sintetizou com delicadeza: “É um reencontro com a própria história — um processo que, quando acolhido, gera paz.” A mensagem que ecoa é de resiliência, empatia e graça: mesmo diante de despedidas e perdas, sempre podemos escolher continuar nos abrindo e criando vínculos, reconhecendo que cada pedaço da nossa trajetória contribui para quem somos hoje.

O valor dos filhos e o chamado ao cuidado

Ao final desses quatro dias, uma verdade ficou clara para mim:
os filhos não são um apêndice da missão — eles são parte dela.

Cada palestra, cada fala, cada história reforçou que cuidar das crianças é cuidar da própria obra de Deus.
O CMM tem sido uma ferramenta preciosa nesse sentido — promovendo diálogos, treinamentos e espaços de escuta que ajudam pais, líderes e educadores a se prepararem melhor.

Porque cuidar bem dos filhos é também um ato de fidelidade ao chamado.


Quando o evento terminou, eu estava tomada por um sentimento de gratidão por ver tantas pessoas comprometidas com esse tema. Esperança de que tudo o que vivemos e aprendemos juntos gere frutos duradouros.

Como disse Megan Norton,

“Pertencer leva tempo, porque a complexidade da história humana exige tempo para ser compartilhada.”

E é isso que o CMM tem nos ensinado: nosso ministério é feito de pessoas, e pessoas florescem quando são cuidadas.

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Daniela Condor

Colaboradora da redação do Blog CMM, esposa, mãe, servindo entre culturas desde 1995. Atualmente vivendo em um país da África Ocidental.

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